"Não encontramos respaldo daquela visão de que o Uber é um engenheiro que faz bico", diz Geraldo Goés, pesquisador do Ipea e responsável por um levantamento detalhado sobre o setor no Brasil
O mercado de trabalho de cerca de 1,7 milhão de brasileiros ainda é uma incógnita para pesquisadores. Faltam dados para entender a fotografia completa do setor de profissionais que atuam com aplicativos de transporte, seja de corrida de passageiros, como Uber e 99, seja de logística, como iFood. Institutos de pesquisa, porém, têm usado dados como o da Pnad Contínua, pesquisa do IBGE, para começar a visualizar esse quadro. É o caso do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada, o Ipea, que conta com um extenso e contínuo estudo do setor.
Pela instituição, já foi possível mapear, por exemplo, que cerca de 1,7 milhão de brasileiros trabalham com aplicativos de transporte no país. Na maioria, homens, pretos e pardos, com idades inferiores a 50 anos e com a escolaridade variando significativamente conforme o subgrupo destacado. A distribuição regional também mostra uma concentração de entregadores de mercadorias via moto e motoristas de aplicativo e taxistas na região Sudeste, enquanto os mototaxistas se concentram nas regiões Nordeste e Norte do país.
A EXAME conversou com Geraldo Goés, pesquisador responsável pelo levantamento do Ipea e especialista em políticas públicas e gestão governamental na Diretoria de Estudos e Políticas Macroeconômicas (Dimac) do instituto. A conversa acontece poucos dias depois de o governo apresentar à população um projeto para regulamentar a profissão.
Como vocês chegaram ao número de 1,7 milhão de trabalhadores atuando na Gig Economy de transporte, como Uber, 99 e iFood?
Desenvolvemos uma maneira de abordar a Pnad Contínua para tentar entender o trabalho desses trabalhadores informais. Inicialmente, focamos no setor de transporte. São pessoas sem vínculo formal, que trabalham sob demanda, num trabalho temporário. Chegamos ao número de 1,7 milhão de pessoas em 2022. E com a pandemia, obviamente cresceu, mas continua crescendo. É uma tendência do mercado de trabalho que veio para ficar. É uma resposta à mudança estrutural no mercado de trabalho, com a digitalização da informação.
Qual o impacto econômico dessa massa de trabalhadores?
Tem sido uma preocupação dos institutos de pesquisa mensurar os impactos econômicos da Gig Economy. O próprio IBGE fez um levantamento no ano passado que aponta que há cerca de 1,5 milhão de pessoas atuando com isso, o que se alinha com nossos resultados. É importante ter cada vez mais dados sobre essas plataformas, porque é uma tendência de mudança de mercado de trabalho global. Há uma realidade semelhante nos Estados Unidos, na União Europeia, na Ásia. O primeiro passo, que é saber quantas pessoas trabalham com isso no Brasil, já demos. Mas ainda é difícil, por exemplo, dizer os impactos para o PIB, por exemplo. Dentro do nosso estudo, sabemos que o rendimento médio desses trabalhadores fica entre um e dois salários-mínimos. Não é expressivo, mas também não é algo a ser ignorado, principalmente num país como o Brasil. De rendimento, o impacto pode não ser tão significativo, mas como construção social, é muito relevante.
Como assim?
Porque gera ocupação e renda e faz a economia circular e estimula o setor de serviços. Se as plataformas não existissem, o mercado seria mais ineficiente. As pessoas ficariam sem renda, subutilizadas. Esse é o grande dilema. As inovações tecnológicas são poupadoras de mão de obra, então precisam ter ferramentas que garantam renda para as pessoas. Por isso é importante mecanismos, por exemplo, que garantam uma renda mínima, ao mesmo tempo que cuide para não precarizar o trabalho das pessoas. É um desafio, e o governo precisa atuar, mas sem ser capturado pelas empresas e sem ser puramente populista.
Com o saldo positivo de trabalho formal, poderia cair o número de trabalhadores informais fazendo serviços como Uber, mas isso não está acontecendo. O trabalho formal cresce, mas o informal cresce também...
Exatamente, não está acontecendo. Não encontramos respaldo daquela visão de que o Uber é um engenheiro que faz bico, um complemento. Na verdade, são pessoas com escolaridade média, principalmente homens, concentrado muito na região Sul e Sudeste. Não é uma concorrência com o mercado formal. O que existe é essa mudança estrutural no mercado de trabalho.
Onde estavam esses trabalhadores antes de atuarem com a Gig Economy?
Acreditamos que muitos estavam no mercado informal ou em subempregos. Há também pessoas que estavam trabalhando com um número de horas não desejado. Uma carga horária semanal pela metade, que permite a elas complementarem com esse serviço. Há também aquelas que passam por jornadas de trabalho exaustivas. É um mix de todas essas realidades.
Quase 2% da população brasileira trabalha assim....
É muita gente. E há uma vulnerabilidade aqui. Nossa última pesquisa mostrou que apenas 23% das pessoas que atuavam como motoristas ou entregadores de aplicativo contribuíam para a previdência social. Isso mostra que há vulnerabilidade e também demonstra que, lá na frente, se nada fosse feito, poderíamos ter uma rachadura na proteção social dessa parcela da população. Teria, com certeza, uma pressão muito grande no sistema previdenciário.
Falando em previdência, o governo divulgou nesta semana um plano de regulamentação para os profissionais do setor, que inclui uma alíquota de 27,5% a ser paga para previdência social. Como você avalia essa decisão?
Essa regulação é essencial. Mostra uma mudança necessária para proteger esses trabalhadores, algo que já ocorre em outros países, como Reino Unido, Alemanha, e Dinamarca. Por lá, já são vistos como empregados, mas claro, aqui, precisa ser uma decisão alinhada, combinada, negociada. Não pode ser algo que vem de cima, do governo, para baixo.
Queria voltar a falar sobre onde estão as pessoas que trabalham com aplicativos de viagens. A pesquisa do Ipea aponta que há uma concentração no Sudeste e no Sul, certo?
Essa é uma questão muito interessante porque fala sobre desigualdades regionais. Se você vai para o Nordeste, por exemplo, há muito mais motocicletas do que automóveis, o que impacta nos empregos da Gig Economy. Agora, as plataformas estão incorporando serviços de mototáxi, o que pode ajudar a intensificar esse trabalho nas regiões Norte e Nordeste e também em grandes comunidades de centros do Sudeste, que usam muito o deslocamento por motocicletas.
É muito difícil conseguir dados desse setor no Brasil?
Sim. Se você olhar para os Estados Unidos, tem uma espécie de normatização para que todas as plataformas, de diversos setores, publiquem os seus números de uma maneira padronizada. Não rígida, mas no mínimo padronizada. Assim, nos Estados Unidos é mais fácil saber o universo de pessoas envolvidas numa plataforma. Isso facilita muito para o pesquisador desse tipo de informação. Por aqui, não temos dados de nenhuma empresa específica. É tudo pela Pnad Contínua. Isso dificulta até a criação de políticas públicas. Por isso também é importante o IBGE fazer esse estudo das plataformas.
Sobre a regulamentação divulgada nesta semana, qual a sua avaliação final?
O mercado de trabalho brasileiro está passando por transformações estruturais, e o governo precisa estar atento a isso, regulamentando na medida do possível. Não deve fazer uma intervenção, mas precisa abrir esse diálogo e avançar. Se você comparar o Brasil com o que outros países estão fazendo, há muito ainda a ser feito. Mas começar essa discussão, estabelecer uma renda-mínima e olhar para a previdência são passos importantes.
Daniel Giussani - Exame.
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